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O sangue corre em Gaza

24 out 2023

Inicio esse artigo fazendo menção ao título de um importante ensaio escrito pela filósofa judia Simone Weil no Feuilles libres em março de 19371 para lembrar-nos: há momentos na história em que o aparente equilíbrio da análise só serve para reforçar o peso de uma balança alterada e injusta. As medidas do Estado de Israel em Gaza são escandalosas, quer do ponto de vista cínico do Estado democrático de direito, quer do ponto de vista do humanismo mais básico: o etnoestado de Israel é indefensável!

Enquanto agia nos territórios dominados na Cisjordânia, Israel mantinha impunimente, sob olhares ocidentais indiferentes, a cisão racialista e colonial requentando um apartheid de nova estirpe. Com o massacre perpetrado pelo Hamas, a dor dos judeus, instrumentalizada por Netanyahu, pôs em curso uma campanha genocida, sob anuência da imprensa mundial, que se refere a ela como guerra ao Hamas e olha com insensibilidade o efeito de bombas que caem em hospitais e igrejas.2 Eis uma verdade difícil de engolir.

Mas a armadilha dessa posição, conscientemente cega, foi concernente à teoria da chamada “guerra assimétrica”. Foi ela que abriu o caminho para consolidar a ideia de que, pelo fato de o Hamas usar edifícios públicos, eles poderiam ser bombardeados. Desde de 2014, a inteligência militar israelense — um contrassenso — concluiu que a tática repousava em utilizar a contraofensiva israelense como forma de fragilizar sua legitimidade.

Segundo a conclusão de muitos teóricos da “guerra assimétrica”, o objetivo do Hamas não repousa na efetividade do seu ataque, mas em despertar o contra-ataque por parte do Estado de Israel que, ao atacar alvos civis, se vê descredibilizado. “A vitória vem do número de civis palestinos mortos com o contra-ataque, não de israelenses.”3 Se a verdade é um momento do falso, é há uma meia verdade nessa interpretação, o paradoxo tenebroso é que ela não “levou à consciência preventiva” do governo israelense, pelo contrário, na construção do ideário de que o palestino é um sub-humano, ele a usou e a disseminou à imprensa que lhe dá legitimidade para atacar indiscriminadamente edifícios públicos.

Estaremos mortos se acaso uma bomba lançada — ao fazer de uma só vez quinhentas vítimas — for justificada ao sabor dos humores do anjo da guerra. A instrumentalização da dor de judeus por parte do governo israelense acelerou o seu objetivo desenvolvido há mais de dez anos: a aniquilação de Gaza. Não! A morte de crianças não pode ser encarada como efeito colateral. Há crimes de paixão e crimes de lógica, dizia Camus, estamos na época da premeditação e do crime perfeito.

Netanyahu tinha todos os indícios do ataque nas mãos4 enquanto o álibi “irrefutável” do Ocidente se desenhava pintado com as cores do sangue de 1.400 israelenses assassinados. De lá para cá em nome da “segurança de Israel” fósforo branco em Gaza e no Líbano foram lançados enquanto o Ministro da Defesa israelense declarava lutar contra animais humanos. Em uma semana, mais de 4 mil palestinos morreram, dentre os quais 1.200 crianças que passaram a ser enterradas em valas comuns,5 e 1,1 milhão de palestinos são forçados a abandonarem suas casas numa nova Nakba (catástrofe). O campo da vingança é regado com sangue de inocentes.

Foi a filósofa Judith Butler, vista como persona non grata tanto pelo governo de Israel quanto pela extrema-direita israelense, que mostrou com clareza como as formas contemporâneas do sionismo excluem a possibilidade de ser sionista e lutar pelo fim da subjugação colonial.6 Muitos pensadores antes dela haviam chegado à mesma conclusão. O sionismo na prática concreta é uma ideologia a impulsionar um neocolonialismo de ocupação territorial na Cisjordânia.

O parafuso do crime perfeito foi apertado quando a oposição às políticas do Estado de Israel e ao sionismo passou a ser encarada como exclusão à judaicidade. Essa cosmovisão equalizou dois lados de uma mesma moeda: ser judeu passou a ser visto imediatamente como ser sionista e ser antissionista passou a ser visto como ser antissemita. Com isso, abriu-se o caminho para a ocupação criminosa de territórios palestinos condenada até mesmo pela ONU — braço impotente capitaneado pelos EUA — como “flagrante violação do direito internacional e um grande obstáculo para a concretização da solução de dois Estados e de uma paz justa, duradoura e abrangente”.7

Todos sabem que os 75 anos do Estado de Israel, forjado pelo colonialismo britânico e por uma militarização radicada na gestão étnica do povo palestino, instaurou um neoapartheid por toda Cisjordânia. A violência atmosférica dessa política segue todos os ritos da manutenção colonial: militarização e domínio do espaço no qual circulam os sujeitos, hiper-identificação e vigilâncias diuturnas, exclusão de todos os processos participativos e opressão direta pela bota dos militares. Enfim, um identitarismo estatal, organizado pela etnicidade, solenemente ignorado por aqueles que muito falam de identitarismo. Enfim; um etnonacionalismo como a verdade identitária da gestão de um capitalismo fim de linha.

É nessa forma violentamente coercitiva e desumanizante que se encontra as raízes das mortes de 7 de outubro como foi denunciado pela Voz Judaica pela Paz8 cujas sementes foram lançadas pela regulação de uma linguagem que constrói a ideia de subcidadãos matáveis e exploráveis. Mais do que uma violência direta — expropriação de terras, imposição de exílio, espaço de circulação sitiado, etc —, a gestão de Israel dos territórios ocupados organiza uma violência simbólica dirigida contra o povo palestino: ataca diretamente as formas manifestas de sua identidade cultural. Gestão odiosa que cinde a Cisjordânia de uma ponta à outra do mapa.

Na guerra, instrumentalizada por Netanyahu e sua extrema-direita como vingança, Israel tem constantemente atacado os monumentos mais significativos à identidade palestina.9 Com sua vingança em curso, aquilo que era latente adveio de maneira radical; ficou claro como o colonialismo israelense construiu lugares definidos por uma linguagem de exclusão do palestino cuja violência foi naturalizada pelos porta-vozes da “democracia” ocidental.

Resultado: ignora-se cinicamente que o Hamas é na verdade um efeito desse processo. Sabemos quanto o Hamas foi fortalecido não apenas por essa violência como pelo financiamento do próprio serviço secreto israelense (Mossad)10 e por aliados do Ocidente como a Arábia Saudita e o Catar. Isso deveria ser motivo suficiente para apreendermos que a segurança de seus próprios cidadãos é a menor preocupação do Estado israelense. Quase ninguém da imprensa ocidental, por exemplo, se pergunta onde estão os 199 reféns e quais os impactos das decisões desastrosas do governo israelense para a segurança deles.

Felizmente, o poder dessa violência etnonacionalista passou a ser denunciada por judeus não coniventes com a prática concreta da exclusão e da desumanidade imposta aos palestinos desde seu surgimento. Judeus antissionistas, que nem por isso se veem feridos em sua judaicidade, reconhecem que devem rejeitar a negação da humanidade dos palestinos, em todas as suas formas.11

Todos nós sabemos; as baionetas e os canhões, a restrição do espaço e a falta de oxigênio, serviram para naturalizar um tipo de violência atmosférica que naturalizou a segregação dos palestinos. Todos os ouvidos dos grandes pastores da assim chamada “democracia ocidental”, no entanto, foram surdos à realidade e agora seus olhos estão fechados ante o genocídio declarado por Netanyahu e sua gangue.

Portanto, não se deve esperar nada desses cínicos pastores. A violência simbólica que configura a dimensão normativa das formas de dominação dos territórios por parte de Israel se torna uma violência subjetiva e objetiva ao palestino que não vê outra saída senão a defesa de suas dignidade e liberdade. Se há esperança em Gaza, ela reside na união dos seus condenados.